15.5.09

Ônibus ou piscina?

E de repente, o voo. Dois metros me separavam do instante em que estava de pé, preparado para sair, daquele outro em que me encontrava deitado de costas no chão. Quase inerte, a um passo da cadeira de rodas, com toda a contrariedade do termo e toda a dramaticidade do ator, rezei, depois de anos.

Nunca havia passado por experiência parecida. Nunca uma freada havia me derrubado com tanta potência e plasticidade. A queda foi cinematográfica, perfeitamente delineada para que o corpo se estatelasse sem quebrar um osso, sem um ferimento. Foi um voo alto, de contornos estilizados. No momento, parecia rápido demais. Depois ficou cravado na memória. Cada milésimo de segundo daquele salto performático formava uma câmera lenta necessária para a pressa cotidiana.

Eu conseguia me ver em outro plano, através dos olhos de outro passageiro ou do cobrador, que não evitou a pergunta do caos iminente e da preocupação aparente: “Tudo bem?”.
- Mas ora se não está. Adorei ter dado esse voo magnífico na plenitude ambulante do busão. Shooooooow, cara! Vamos de novo? Dessa vez, motoraaaaaa, vê se bate, porque aí eu voo pela janela, porra! – é claro que eu fiquei puto.

Mas a cena me fez lembrar de uma vez quando eu tinha uns 10 anos e voei de skate pela primeira vez. Foi em uma pista em forma de piscina que tinha uma rampinha de saída na parte de fora. Sai uns três metros do chão e quedei pra fora da pista em alto estilo, de pé e correndo. Se fosse hoje, quedava direto pro hospital.

O pior de tudo é que o motorista parou o ônibus, todo mundo parou de fazer o que estava fazendo, o cobrador esqueceu da grana, o emo do banco do lado ficou em choque, o metaleiro queria dar um mosh em mim, a velhinha não parava de falar “tadinho”, as pessoas ficaram preocupadas, eu me levantei, agradeci toda a comoção e desci na parada errada.

1.4.09

Artimanhas

Confesso. Me destopeteei no sinpúcio só pelo bambúrrio efêmero. Aquele sentimento bandido fugaz que nos manipula a gatimanhos imprevisíveis. Disseram-me noutrora que traria sorte, mas nunca acreditei. Aquela mesa grande cheia de bolas e mais bolas, coloridas ou listradas, e o problema tava na cachola, na minha cachola. Era o meu cilício inevitável, meu Partênope que caiu no ostracismo gazetal.

Quanto mais eu avançava ao ponto da mutação irreversível, mais forte ficava o meu âmago empalamado, que começava a sentir uma ternura albina paradoxal. Um entremeio sem fim. Um riso inacabado.

Uma figura ignóbil surge à porta. Com farfalhos de dor, se aproxima quase que engatinhando. Me diz: “Pipila que voa, pipila que voa!” Não entendi. Fiquei aturdido com tal revelação. Não sabia mais se o bambúrrio era vil, se Partênope existiu, se a puta que o pariu.

Fiquei acéfalo por um instante. Desejei a morte. Padeci de enfermidades nunca antes reveladas. Saí do meu corpo. Conheci o mundo. A África, o Oriente Médio, Reykjavik, Rotherdam, Oslo, Juneau, Nuuk. Lá não chove na primavera. Aliás, lá não existe primavera. Aqui chove sempre. O teto desaba. A luz se apagou. É o fim. Mas nada é o que parece no fim. Tudo se inverte, se catalisa, metamorfoses existenciais, engenheiros ativistas de um clã naturista de Wally Salomão. A mão minha na mão tua. Tudo é dois. Todos somos. Tacada final. Caiu a bola oito.

28.1.09

Ramilpolar e polares

Noutro dia de janeiro, ouvi Vitor Ramil cantando sobre o frio enquanto passeava no centro de Porto Alegre. Deu-me uma dor no peito. Coisa que arde os olhos e dilacera qualquer impressão de calma. Não entendia a conexão.

Subi a Marechal, desci a Andradas, atravessei a Caldas Junior e fui dar no Centro Cultural do Quintana, sem ambiguidades mundanas. Sentei num bar e pedi uma gelada pra ver se atenuava meu dissabor. Nada. A cerveja amarga me deixou em transe. Meu peito virou inverno. "Chove na tarde fria de Porto Alegre...", quase chorei.

Explodiu uma caricatura de casacos em minha mente. Guarda-chuvas tremiam sob trombas d´água e o frio... o frio não existe sob um calor de 38 graus (o Celsius que me perdoe, mas vai se fudê! O Farenheit é que tá certo. 101ºF traduz o sofrimento). A única sombra gélida que me cobria era o copo gotejando em minha mão. A cabeça parecia uma bola de ferro em brasa, meu corpo todo ardia. Meus olhos queimavam e imaginavam o inferno ouvindo Ramil. "Conexão impossível", pensei.

Saí dali rumo ao Gasômetro. No caminho, me esgueirava por baixo das árvores em fuga, quando elas apareciam. O sol me perseguia. Eu me irritava aos poucos com a minha pele em profusão. Urgi clemência. Parei mais um pouco e segui parando.

O calor não tem estética, é antirroupas, segundo a nova ortografia de merda. Ele esmoirece as pernas, embambeleia as mãos, subjaz a cabeça, transmuta verbos. Vitor Ramil deve estar de férias. Certamente, ele não canta no verão.