16.12.08

G* era uma menina pura

Os riscos dos rabiscos que saíam daquelas mãos não eram apenas agruras grudadas sob os maléolos doridos. Emanavam um ar diferente, um traço eloqüente. Alguma coisa dizia que aquele era o dia da vingança, que a alma abriria as portas da justiça para a dócil menina.

G* era uma garota mágica, tinha o dom da exortação e a habilidade de diluir biscoitinhos em um copo de leite. Não que a habilidade lhe trouxesse benventuras ou troféus, mas o dom marcava o compasso certo do rumo que ela iria tomar para alcançar seu objetivo maior, que era dar cabo de quem lhe fizera outrora sofrer.

Começou a definir estratégias, traçar planos, arquitetar maldades. O primeiro foi o padre, que a obrigava a rezar de joelhos todo domingo. "Santo é o caralho", disse antes de arrancar-lhe a prece do peito e comer seu coração. Partiu para acabar com o vizinho. Esse era dono do apartamento onde ela morava com a mãe e queria mandá-las para a rua sem maiores motivos. "Na rua eu não moro, babaca!", soltou o verbo enquanto passava o fio da navalha na epiglote do velho. O terceiro foi o padeiro da esquina e, quanto mais matava, mais queria matar, acabar com o mal do mundo, com as intempéries do ser humano que atravancavam as relações puras.

Lá pela septuagésima vítima, ela descobriu que o inferno que a tomava se diluíra no último copo de leite e então resolveu voltar aos rabiscos e olhar estrelas caindo, sem interferências meta-eletrônicas. "Te vi escorada na janela. Era bela, era bela."

*G vivia num orfanato e tinha 12 anos inexistentes.

7 comentários:

Cherylina disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cherylina disse...

A desconstrução ordenada.

;)

Depois apague, por favor. És o primeiro ser a saber deste meu lapso blogal!

Anônimo disse...

gosto da tua escritura. gostaria que tu lesse o que teu velho amigo escreve. cabeção! last chance:www.celeuma.blogdrive.com

M. disse...

apesar de não saber o que é "exortação", e muito menos saber como teu link foi enviado pra uma conta minha de e-mail que raramente acesso, posso dizer que gostei do que li.

M. disse...

pode ser, pode ser. o triste é que ainda ando por lá. então, são mais de cinco anos convivendo com pessoas muito patéticas e raras brilhantes.

teus textos me exortam.

aí tá certo? hehe.

Anônimo disse...

Já fui G várias vezes em meus devaneios macabros. Te adoro.

Anônimo disse...

G é o ponto de encontro das nossas trivialidades. Eu, você e G, tudo a ver. Beijinho com sabor de moranguinho.